quinta-feira, 28 de março de 2024
MUITA HISTÓRIA

Nelson, o árbitro que apitava com uma arma no bolso na região

12/06/2021
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                              Nos anos 70, Nelson de Souza iniciava sua carreira como árbitro de futebol. Estava certo de sua decisão. Era uma paixão. Sabia de todos os desafios. Dos riscos. Das agressões verbais à própria mãe. Mas, na realidade do esporte, a coisa era mais conturbada. Mais séria. Então, diante de muitas ameaças, teve a façanha em apitar inúmeros jogos armado. Sim, em posse de uma Beretta – arma italiana utilizada por nazistas -, encarou as quatro linhas do campo sem nada temer. E quase tudo deu certo. Se bem que, por algumas vezes, apanhou. Outras, saiu escoltado pela polícia. Tudo normal, como sempre foi no futebol tupiniquim.
                              Em Campo Mourão, Nelson é mais conhecido que nota de R$2. Além de árbitro nas décadas de 70, 80 e 90, também era e ainda é, encanador. Participou inclusive, da construção do Hotel Santa Maria. As duas paixões, tubulações e apito, eram realizadas a seu tempo. Mas, hoje, já com as chuteiras penduradas, restaram os canos. Ele continua encanador. “Na vida precisamos estar ao lado de dois profissionais: um advogado e um encanador”, brinca ele.
                              Ainda aos 16, Nelson já era encanador. Aprendeu o ofício apenas como mero observador. Um curioso. Não largou mais. Mesmo sendo árbitro nos finais de semana, reservava outros dias aos encanamentos. A grana era melhor que no apito. Dois anos depois, foi convidado por um amigo, árbitro, para ajudar numa partida. Ele aceitou, embora não soubesse nem mesmo marcar um impedimento. “Naquele dia só levantava a bandeira para mostrar se a bola tinha saído”, disse.
                              O que era apenas uma diversão, tornou-se um desejo. Em seguida, obsessão. Não tinha outro jeito. Seu destino estava traçado. Então, em 1974, foi a Maringá. Durante seis meses concluiu o curso de arbitragem. A partir daí, apitou de tudo. Foram jogos amadores, escolares, empresariais e profissionais. Somente nas peladas de sábado, entre associados do Country Clube, foram 32 anos. E foi lá, uma das agressões sofridas. “O sujeito não aceitou o cartão. Covarde, veio correndo por trás e me deu uma voadora. Acertou os dois pés nas minhas costas. Fui parar no hospital”, lembrou.
                              Com o tempo, Nelson passou a integrar os quadros da arbitragem paranaense. Chegou a fazer um “atletiba”. Atuou nas séries A e B do estadual. E passou por muitos perrengues. “Eu era escalado nos piores jogos. Os mais conturbados. Passei por muitas ameaças. E, por isso, comecei a ir armado”, disse. Na mão, o apito. No bolso de trás, os cartões. No da frente, a Beretta. Pronto, que o jogo inicie.
                              Nelson conta que as quatro linhas compõem um cenário complexo de sentimentos. Por um lado, a paixão do torcedor. Do outro, a competitividade, a vontade dos jogadores em ganhar. O juiz fica ao meio de tudo isso. Não consegue agradar a todos. E, não é à toa, que tem a mãe xingada, também, por todos. Então, receoso em apanhar, Nelson se armou. “Tinha um bandeirinha que atuava comigo também armado. Ele improvisou uma faca no cabo da bandeira. Se o pau comesse pro lado dele, iria se proteger”, disse. Segundo ele, também conheceu outro auxiliar que encheu o cano da bandeira com concreto. Virou uma arma. O problema era levantá-la a todo momento.
                              A experiência também preparou Nelson. Segundo ele, muitos macetes foram utilizados para a sua proteção. Por dez anos, ele foi investigador de polícia, em Campo Mourão. Conhecido pela rigidez no serviço, foi apelidado como “tenente”. Aproveitando esse gancho, chegava aos estádios e já convocava os pm´s do jogo. “Eu me apresentava como tenente. E pedia os nomes deles. Dizia que enviaria junto ao meu relatório. Não dava outra. Tinha tratamento vip”, lembrou. Nelson lembra da vez que um torcedor o xingava pela cerca, sem parar. Bastou um dos pm,s ver a cena, para afugentá-lo dali.
                              Cascavel, década de 80. Nelson chegou para apitar uma partida da série B do paranaense, contra o Apucarana. No vestiário, enquanto se arrumava, o maqueiro alto e forte do time local decidiu fazer uma “visitinha”. “Qual de vocês vai apitar essa bosta? Se a gente não ganhar não sairão vivos daqui”, teria dito. Nelson, calmamente, colocou sua Beretta ao lado do banco, olhou dentro dos olhos do sujeito e disse: “Quem vai apitar essa bosta sou eu. E se vocês não ganharem, não é problema meu”. Antes de sair, ainda assustado, o maqueiro teria oferecido uma massagem, como uma espécie de boas vindas.
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NELSON
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Nelson está com 73 anos. Tem quatro filhos, frutos de três casamentos. Atualmente, é solteiro, mas, namorando. Mora numa meia água, aos fundos da própria casa, cedida a uma das filhas. Como reside ali sozinho, o local é uma bagunça só. E ele não está preocupado. É o seu cantinho. Nascido em Apucarana, em 1951, trabalhou na roça até os 16. E por trabalhar desde os 7, não concluiu os estudos. Fez até a quinta série.
O pai era um “mateiro”, ou seja, abria o mato para a formação de fazendas. A mãe sempre foi do lar. Juntos, tiveram dois filhos. Nelson é o mais velho. Deixando a lavoura, se embrenhou na construção civil. Era o apontador, uma espécie de fiscal da obra. Mas, de tanto observar encanamentos, virou um encanador. Também trabalhou em loja de construção e em secos e molhados. Mas, a partir de 74, seus caminhos já haviam sido traçados. Carregaria pra sempre o apito e as tralhas de canos. Não é exagero dizer que, em ambas profissões, virou professor. Deu aula sobre hidráulica, no Senac, e sobre arbitragem, pelo Paraná a fora.
Palmeirense, Nelson nunca escondeu a paixão pelo futebol. Chegou a jogar no gol, ainda aos 11. “Eu era alto e bom. Jogava no meio dos adultos. Mas, franzino, desmaiei algumas vezes com boladas no estômago. Naquele tempo, a bola era de capotão. Em dia de chuva, ela vinha com peso de cimento”, disse. Fã do zagueiro Ferrari, do Palestra, também jogou na zaga. Mas o prazer foi logo substituído pelo apito.
A paixão pela arbitragem começou bem cedo. Vendo que tinha aptidão, a mãe fez o uniforme. Era todo preto. Também ganhou chuteiras. E, quando adentrava ao campo, lá estava ele, impecável. Imponente com sua altura. Roupa passada. Chuteiras brilhando. “Sempre tive muito zelo pelo meu uniforme”, disse.
Pelo paranaense, Nelson apitou entre 1974 e 2002. Porém, em 84, foi indicado a árbitro da CBF. Foi o primeiro da cidade a tal conquista. Em seguida, também obteve o mesmo respaldo como juiz de futsal. Numa das partidas nacionais, ele não se esquece do cascudo que levou de um torcedor. “A arquibancada é muito próxima da quadra. Então, num momento em que fiquei de costas aos torcedores, um deles me deu um cascudo na cabeça”, disse.
Também foi nas quadras de futsal quando um jogador, engraçadinho, ainda caído, baixou o meião de Nelson. Todo o ginásio riu. A piada até foi boa. Mas o constrangimento veio depois, e contra o piadista. “Peguei o cartão vermelho e disse a ele: levante meu meião agora. Com medo de ser expulso, se ajoelhou e arrumou o que havia feito. A torcida,
que antes ria, agora gritava, toma, toma”.
Hoje, longe dos gramados, Nelson está perto dos filhos e dos netos. Até bisneto já possui. Vive tranquilo, ainda como encanador. Sujeito pacífico, também adora uma prosa. Daqueles que emenda uma história na outra. E, assim, decidiu viver um dia de cada vez, como deve ser. Para receber este repórter, se arrumou. Vestiu a antiga farda. Mostrou
fotos, documentos e comentou sobre um tempo que, definitivamente, não volta mais. O apito agora, somente nos sonhos. (Dilmercio Daleffe/Tribuna do Interior).