segunda-feira, 18 de agosto de 2025
CRÔNICA

A mesa com a dúvida

15/08/2025
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Pr. Pedro R. Artigas

Igreja Metodista

 

À mesa, ninguém tinha muita fome. Não em festa, mas em silêncio. O pão estava ali, inteiro, como se quebrá-lo fosse admitir que a vida seguia sem Ele. O pão talvez já frio, o vinho esquecido no canto. O rumor da cidade entrava pelas frestas — passos apressados na rua, um vendedor de tâmaras, uma criança correndo — e, mesmo assim, a sala parecia suspensa, como se o tempo tivesse perdido coragem. Alguém falou baixo sobre um relato estranho: disseram que Ele havia sido visto. Outros olharam para o chão, apertando as bordas do manto, tentando segurar com as mãos o pouco de esperança que restava.

Então, Ele apareceu. Não com alarde, não com trovões. Não como um fantasma, nem como uma lembrança. Mas como presença viva. Ressuscitado. Real. Apenas como quem chega no lugar em que sempre pertenceu. E, antes de qualquer abraço que curasse, veio a ferida da verdade: a incredulidade e a dureza de coração. Palavras que não são pedras, mas espelhos. Cada um viu ali o próprio rosto: a recusa em acreditar no testemunho dos outros, a mania de proteger-se do impossível para não sofrer de novo, a teimosia que cresce como calo na alma.

Havia relatos. Mulheres tinham dito. Um caminho, em Emaús, tinha sido incendiado por uma presença. E, ainda assim, preferiram a parede ao vento. Às vezes a dureza de coração não é maldade; é medo que se acortina com lógica. É o método científico dentro da sala do luto, exigindo provas enquanto a vida sussurra sinais. É também preconceito antigo: não crer no testemunho das mulheres, não crer no espanto dos amigos, não crer na esperança por ser delicada demais para segurar sem quebrar.

Mas repare no cenário escolhido: Ele veio à mesa. Não a um tribunal, não a uma praça de discursos, mas ao lugar doméstico onde se divide pão e vulnerabilidade. E antes de qualquer abraço, antes de qualquer celebração, vem a repreensão: “incredulidade e dureza de coração.” A repreensão, então, tem gosto de cura. Não humilha; endireita. Não cancela; convoca. É a fala de quem ama e, por amar, não deixa a gente acomodar-se numa versão encolhida de si. A incredulidade é compreensível, diz o silêncio dos olhos dele, mas não é destino.

Penso nos nossos dias, neste século de telas e travas. Recebemos boas notícias com desconfiança profissional. Um milagre precisa de link, de verificação por três agências e um selo azul. A gente confia mais no algoritmo do hábito do que no olhar de quem voltou da estrada dizendo: “Eu o vi.” Dureza de coração não é apenas não acreditar; é tornar-se impermeável ao inesperado. Nos protegemos tanto da decepção que perdemos o espanto. E sem espanto, o mundo fica menor.

Quando Ele fala, porém, algo se move. A palavra “dureza” racha, como barro ressecado lembrando-se da água. E, na rachadura, entra luz. Não foi só uma bronca; foi um mapa. Da mesa ao mundo, do medo à missão. Dali a pouco, eles seriam enviados, como quem recebe de volta o próprio nome. É assim: a graça corrige e, corrigindo, capacita. A fé, em Marcos, tem pés. Não se contenta em entender; precisa ir.

Imagino o pão finalmente partido, as mãos trementes tocando o quente. O vinho circulando, a conversa subindo de tom, as perguntas ainda sem respostas, porém respirando. Crer não é fechar o dossiê, mas levantar-se da cadeira. O Ressuscitado não pede uma tese; oferece um caminho. E, pelo caminho, o coração desaprende a rigidez. A incredulidade cede lugar à atenção: essa forma de fé que fica de ouvidos abertos para o que a vida insiste em anunciar.

Às vezes, penso que Marcos 16.14 é uma fotografia: “finalmente, Jesus apareceu aos onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e a dureza de coração, porque não deram crédito aos que o tinham visto já ressuscitado”, um instante em que somos pegos no contrapé — céticos, cautelosos, cansados — e, ainda assim, visitados. A mesa testemunha isso: o ordinário hospeda o extraordinário. A repreensão é um convite: “Desarma o peito, vem ver.” Talvez a maior prova da ressurreição seja essa mudança de postura, esse degelo, esse passo inaugural dado com medo e tudo.

No fim, o pão está em migalhas, a mesa menos pesada, a noite menos espessa. Não porque todas as dúvidas sumiram, mas porque a presença venceu a ausência. O coração, que era pedra, reaprendeu a ser carne. E a fé, que parecia palavra grande demais, tornou-se gesto simples: levantar, partir, contar. É tempo de falar e contar as maravilhas do Senhor em nossas vidas. Shalom.