Por Dilmércio Daleffe, Nós HUmanos
Não é errado dizer que a vida de Luis e Mailyn começou em 6 de julho de 2021. Como milhares de venezuelanos, o casal deu adeus ao próprio país para dar um futuro digno ao filho. Ainda gestante, a esposa e o marido trilharam um caminho sem voltas, até a fronteira com o Brasil, por quatro dias. E não conseguem se esquecer pelo que passaram. Desumanidade, falta de bom senso e extrema corrupção, assolaram a jornada. Dias a serem esquecidos.
Luis Alexander Tapia, 36, e Mailyn Naileth Blanco Superland, 22, se conheceram em Barinas, cidade com cerca de 600 mil habitantes – distante 7 horas da capital, Caracas. Ele é técnico florestal, embora nunca tenha exercido. Mas também se aperfeiçoou em eletrônica, informática e em antenas parabólicas. Este último ofício, inclusive, salvou sua vida – adiante
você entenderá. Já a esposa, ainda era estudante quando caiu de amores nos braços do companheiro.
Se conheceram em 2017, através do irmão de Mailyn. Se apaixonaram. Não se desgrudaram mais. Em 2018, já moravam juntos. Época em que Luis gerenciou um restaurante. Mailyn também lá, trabalhou. E, buscando saídas de emergência, frente ao desespero econômico do país, acabaram encontrando, na cidade de Barquisimeto, novas oportunidades.
Então, em meio a uma população de mais de 1,5 milhão de pessoas, Luis passou a ser um vendedor externo. As coisas iam bem. Tempos em que conseguiu comprar até um veículo. Mas para se vencer, era necessário trabalhar um pouco mais que o limite suportava. “Tudo lá foi dolarizado. Enquanto o salário, não. Ganhávamos em Bolivar. Mas para se comprar alguma coisa, era em dólar. Não dava. As contas não fechavam”, revelou.
Mas a notícia de que um bebê estava a caminho, em 2021, mudou tudo. Transformaria a vida dos “três”, para sempre. Luis conta que a Venezuela já vinha de mal a pior, há alguns anos. O sistema público de saúde estava aos farrapos. “Não existiam remédios. Ou um simples comprimido. Não tinham vacinas e quase nenhum médico. Além disso, as contaminações hospitalares assustavam a população”, disse.
Não bastasse isso, a inflação vinha devastando o que ganhava. Os dois contam que, por muito pouco, não passaram fome na Venezuela. “Estávamos comendo apenas arroz, e uma vez ao dia”. Segundo ele, por vezes, os preços de alguns produtos da cesta básica aumentavam até duas vezes no mesmo dia. Certos, como um e um são dois, decidiram chutar
tudo. Inclusive o governo Maduro. Era hora de “descobrir” o Brasil.
Um a um, tudo o que tinham, foi vendido. Fogão, geladeira, pia, móveis e até o carro. A grana acumulada chegou a míseros U$350. Então arrumaram as malas e partiram no mundo. A saída aconteceu em 6 de julho de 2021. Seriam quase três mil quilômetros até a fronteira com o Brasil. Mailyn estava grávida de quatro meses. Ao apanhar o primeiro ônibus,
perceberam a corrupção do país. Ao invés de U$10, tiveram que pagar U$40. Isso porque, segundo o motorista, ele tinha que deixar propina a várias barreiras policiais do caminho.
Além da extorsão da passagem, pelo menos em três vezes, o casal teve que sair do coletivo para uma revista dos guardas. “A verdade é que, se encontrassem dinheiro, eles tomariam. De forma geral, seríamos roubados pela própria polícia”, afirma Luis. Num determinado trecho, a estrada estava tão ruim, que o motorista desembarcou todos os passageiros. E,
mais adiante, conseguiram uma carona na carroceria de um velho caminhão.
Agora, numa comunidade conhecida como “88”, tiveram que seguir viagem a pé. Luis conta que o local foi tomado por uma espécie de milícia. Com gente perigosa por todo lado, o jeito foi andar rápido. Maylin conseguiu uma carona. Enquanto Luis, percorreu 80 quilômetros a pé. Durante todo o dia, os dois não se viram e foram se encontrar apenas à noite. Durante sua caminhada, ele estava exausto. E não comia há mais de 24h.
SALVO POR UMA ANTENA PARABÓLICA
Ao chegar numa barreira policial, Luis observou que um guarda tentava arrumar uma antena parabólica. E foi a sua salvação. Especialista no setor, correu até o policial e se prestou a ajudar. Mas ao invés de dinheiro, pediu apenas uma coisa: comida. “Fui salvo por aquela antena. Não só a consertei, como ganhei comida e frutas”, disse.
Sabendo que a esposa estava à frente, assim que devorou o rango, pôs os pés na rodovia. E somente às 17h, ou seja, nove horas depois que Mailyn pegou a carona, os dois se reencontraram. Em todo o caminho, o casal viu um mar de gente. Todos fugindo do país. E, era por esta razão, possivelmente, que a corrupção acabou instalada nas tropas, acreditam. Uma maneira de se aproveitar da tragédia da população.
Já era 9 de julho quando os dois chegaram em Santa Elena de Uairen. Agora, faltavam apenas 30 quilômetros até Pacaraima, no Brasil. Mas, também, o ponto mais crítico da jornada. Luis e Mailyn contaram a grana. Havia sobrado U$70. O restante foi todo utilizado à propina e às refeições, dela. Luis deixou de comer por diversas vezes.
No local, descansando na rua ao lado de outros venezuelanos, já era noite quando um dos caminhantes lembrou que, ali, morava um ex cunhado, policial. Ao encontrá-lo, o sujeito se prontificou em ajudar. No começo queria U$20 de cada um para levá-los próximo à fronteira. Mas acabou cedendo, e cobrou U$10. A grana também seria usada para deixar aos “patriotas” venezuelanos, em cinco barreiras policiais adiante.
E assim aconteceu. O carro levou nove pessoas. Incluindo Mailyn e Luis. Ao descerem do veículo, já avistavam as terras brasileiras. Acontece que a fronteira estava fechada. Sem olhar para trás e, vendo o futuro a poucos metros dali, apanharam um carreador em meio ao mato. Atravessaram um rio. Subiram uma montanha e, após muito suor, finalmente chegaram ao Brasil.
DESCOBRINDO O BRASIL
Definitivamente, o Brasil não é para amadores. No entanto, segundo o casal, eles não imaginavam ser tão bem recebidos aqui. A começar, sem ter que “molhar” a mão de alguém, como aconteceu inúmeras vezes na caminhada.
A chegada aconteceu 10 de julho de 2021. Mesmo cansados, enfrentaram uma fila enorme para iniciar os procedimentos da nova documentação. Eram os números 609 e 610 da fila. Enquanto esperavam, receberam marmitas provindas de entidades locais. Um alívio a alma. Mas com o desgaste da última caminhada, de 40 quilômetros, Luis pegou os últimos
dólares e investiu em um hotel, compartilhado com outras mulheres, à esposa.
GOIOERÊ
Foram três dias de espera até a finalização dos documentos. E quando a marmita não vinha, Luis comprava uma à companheira. “Eu só comia se sobrasse alguma coisa dela”, disse. Agora, com um CPF brasileiro em mãos, os dois foram encaminhados à Boa Vista, onde permaneceram por mais de um mês em um refúgio. Lá, já estavam numa lista para serem levados até Goioerê, no Paraná.
Luis tinha um amigo venezuelano que residia ali. Então, ao fazer contato, o sujeito revelou que iria ajudar. Com a ajuda do governo brasileiro, o casal finalmente ancorou em terras paranaenses em 18 de agosto de 2021. “O Brasil é, possivelmente, o país mais receptivo com refugiados. Nenhum outro fornece documentos”, disseram.
Em Goioerê, o casal foi bem recebido pelo amigo, que era casado e tinha três filhos. Mas o fato é que ele havia acabado de perder o emprego. Problemas e gente demais numa casa só. Vendo o drama do companheiro – ele estava comendo apenas arroz e feijão com a família -, Luis e Mailyn optaram por não piorar as coisas. E caíram na rua. E, após permanecerem cinco dias sob um teto, arregaçaram as mangas e buscaram um trabalho.
Com dificuldades no idioma e sem conhecer nada e ninguém, Luis deixava Mailyn na rodoviária de Goioerê e saía de porta em porta buscando um emprego. Não conseguia. Mas sempre retornava com alimentos. E esta passou a ser a rotina do casal. Por alguns dias, moraram no terminal rodoviário e nas praças da cidade. Os banhos se resumiram a uma das pias
do próprio local. O desespero só aumentava. E aquele tão sonhado futuro com o filho, começava a desaparecer.
Mas acontece que a vida é feita dia após dia. E, com uma esperança infinita, anjos começaram a surgir no caminho do casal. Através da assistência social do município de Goioerê, Luis foi informado que, em Campo Mourão havia uma pessoa que poderia os ajudar. Era Jaqueline Faria, uma mulher determinada, que trabalha junto a Caritas – entidade que atua na área de migração e refúgio.
Então, em 22 de setembro de 2021, o casal chegou a Campo Mourão. E, após receber alimentação de Jaqueline, algumas horas depois, já estava acolhido na Casa de Passagem, sob as asas angelicais dos freis franciscanos. “No mesmo dia ela me levou na Agência do Trabalhador. Num só dia, tudo mudou em nossas vidas”, lembrou Luis.
Com a ajuda do Frei Galileu, o casal ficou na Casa de Passagem por um mês. Lá, recebiam cama, três refeições, banho e muito carinho. “O próprio frei nos levou até Maringá para retirar nossos RGs”, disse Mailyn. Dois dias depois de chegar à cidade, Luis já havia conquistado uma vaga fixa como garçom. Enquanto trabalhava, a esposa ficava no abrigo. Ela já estava quase tendo o bebê, que nasceu em dezembro do mesmo ano.
Agora, com a grana entrando, o casal conseguiu locar um imóvel. Deixou os freis, mas sem nunca esquecer da gratidão. Luis também trabalhou em um hotel, como cozinheiro. Mais adiante, atuou como ajudante de um trailer de lanches. Tanto gostou que acabou o arrendando. “Nunca fui tão feliz. Trabalhava tanto que cheguei a tirar R$6 mil livre por mês”, disse. Mas a felicidade não durou muito. A dona do negócio optou em reaver o trailer.
Hoje, o filho do casal já tem um ano. A família mora numa casa alugada, no centro da cidade. Mailyn também trabalhou até pouco tempo. Mas decidiu deixar a empresa. Enquanto isso, Luis comprou uma moto e vem trabalhando com entregas ao Maguila Lanches, de domingo a domingo. Não falta mais comida em seus pratos. E o bebê, quando precisa, recebe cuidados além do que imaginavam. “Nunca tive tanto carinho como vi na Santa Casa de Campo Mourão. Foi tudo de graça. Era o que queríamos e precisávamos quando deixamos nosso país”, explicou Mailyn.
O próximo passo, é guardar dinheiro para abrir o próprio negócio: um restaurante com comida venezuelana. O filho deles vai demorar um tempo para saber como e porque nasceu no Brasil. E, por fim, entender o verdadeiro significado da palavra determinação. Ou melhor, amor.